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Fugindo do Cotidiano

O término do descanso acontecia sempre depois de um longo toque do despertador e de um curto palavrão. Sem jeito e sem ânimo Zezinho se compunha. Também sem café ele ganhava a rua sem muita esperança.

Muito cansado do seu cotidiano, talvez ele somente despertasse quando do momento de dar o sinal ao ônibus que ele mentalmente chamava de vagão.

Dentro, enlatados com ele mais de cem no cotidiano milagre da multiplicação das vagas. Era tudo sempre igual: A ginástica forçada na corrida de obstáculos humanos. A disputa de um lugar. Os sapatos e os pés sempre mutilados e mutilantes na guerra cega e nem sempre surda do abre-alas, o surrado dinheiro sempre atirado com raiva na caixa do cobrador, sempre trocado e exato, pois no queixo a amarga lembrança da briga por falta de troco ainda era sentida. Somando tudo o resultado nunca era positivo. Porém na semana passada tudo mudaria. Sexta havia sido um dia diferente. No sábado, assim como hoje, um pensamento sem encomenda fazia previsões.

Aconteceu assim: Como o vagão era sempre o mesmo, a carga também se repetia. Existia muito de monótono em observar os mesmos problemas refletidos nos mesmos rostos. O mesmo ralo bigode daquele motorista desmotivado. O mesmo futebol que transpirava naquele grupo da porta dianteira. As mesmas sacolas que escondiam as mesmas marmitas dormidas.

Quando Zezinho resolvia enfrentar o “corredor polonês”, sempre experimentava as mesmas sensações: uma cordialidade rara, um olhar desconfiado constante, um aperto proposital. Quando existia ânimo e lembrança, iniciava a caminhada com calma, escolhia o lado e fazia uma pausa ao lado, melhor dizendo, atrás, na verdade escancaradamente grudado nas coxas de alguma garota de boa qualidade.

Sexta feira, no farol da Av. Central, ponto crítico para iniciar a travessia do corredor com êxito de chegar à porta no seu ponto de descer, ele ergueu sua maleta (um avental, uma marmita e documentos) e foi vencendo o percurso. Ao puxar o sinal, notou alguém incomum àquela paisagem. Fixou nela seus olhos sonolentos o quanto pode, e desceu pensando na possibilidade de revê-la.

Na viagem vespertina uma criteriosa e demorada análise naqueles rostos normais, enfadonhos e comuns. Procurava por ela que “estava com um vestida claro”, isso foi a melhor que sua desavisada memória pode reter.

Uma moça, uma dúvida, um olhar fixado, um pequeno sorriso como positiva resposta. Na cabeça cansada, um espaço entre seus problemas pensava:

…Que sorte encontrá-la novamente. Será que é ela mesmo? Deve ser. Ela tem um negocinho diferente, olha bonito para a gente. Será que aquele risinho é para mim?

Perseguiu implacável uma confirmação, marcou sob pressão, vigiou a moça. Muitos solavancos à frente decidiu-se e antes do seu tempo enfrentou o corredor tentando um local perto da moça e conseguiu. Melhor seria difícil, estava na traseira da moça. Na primeira oportunidade puxou conversa e foi vitorioso mais uma vez.

Tateou física e verbalmente uma intimidade maior. Recebeu informações superficiais, mas também não se arriscou muito.

Nesse dia, como em todo dia 10, com o bolso menos vazio, tinha mais confiança, poderia arriscar um convite para Maria. O “sim” ouvido da moça pela manhã motivou a trabalhar mais eufórico. Coração quente e cabeça fria. O coração do gosto pela moça, a cabeça pela postura ponderada.

– Onde podemos ir Zezinho? Está tudo tão caro. – Esse sim previdente mostrava Maria como uma moça cheia de virtudes.

– Hoje tem pagamento Maria.

– Pode fazer falta.

No final da tarde, ele toma o vagão combinado, encontra Maria, vence a multidão, se aproxima, recebe um cúmplice sorriso e começam um diálogo superficial ansiando por descer no ponto combinado.

Final n° 1 

Desceram no ponto indicado por ela, caminharam por ruas estranhas a ele. Passaram por locais ermos, num deles, Zezinho interrompe o caminhar e se posta frente a moça.

– Faz tempo que sonhava com isso. Sorriu e beijou a moça.

Mais uns passos, outra parada, agora iniciativa dela. Os corpos agora se aproximavam sem serem empurrados como no vagão. O silêncio do beijo foi quebrado.

– Quietos! Isso é um assalto.

O susto foi grande, o casal continua abraçado, agora de medo.

– Perdeu garotão. Quietinho nada de querer dar uma de herói. Tá cheio de valente morto.

– A gente entrega tudo.

– Cala boca, ninguém perguntou nada. Vai dar uma de valente, seu filho de uma puta.

– Quer dinheiro leva, mas não faça mal.

 – Ta com medo. Então cala a boca. E a boneca ai? Cai fora, não olha pra trás.

  – Ouviu não, gracinha. Some daqui galinha.

Maria se afasta em passos rápidos e desajeitados.

Sem motivo o mulato forte socou Zezinho e agora vasculha sua carteira.

Maria, após a curva do quarteirão, alivia o passo, ajeita os cabelos. Seu pensamento em segundos repassa o breve romance com Zezinho. Pensa: Boca quente, peito forte.

Sentiu que, mesmo pelo pouco tempo, pela pouca oportunidade, estava se envolvendo com Zezinho.

Com mais calma ainda, respirou fundo, tomou o rumo da Av. Principal, desculpou-se em pensamento, quase sorriu e murmurou…………..Me desculpe, garoto….é isso ai……….era assim que deveria ser feito. Deu de ombros, seguiu em frente.

 

Final Nº 2

Desceram do vagão, o afoito do Zezinho quase arranca a sacola do braço de Maria. Agora ele se entende como seu forte protetor e sapeca um inocente beijinho na face da moça.

Ela troca o ar de acessível por um tom mais sisudo. Diz.

  -As coisas essa noite não serão como você imagina. – Aquele forte trabalhador se transforma num frágil menino. Gaguejando tentou perguntar mais não foi preciso.

-Olha Zezinho, a vida é cheia de problemas. Tô gostando de você estar aqui, mas não vai passar disso. Homem, você precisa de paz na sua vida.

-Tudo ficou mais gostoso na minha vida.

-Pra não estragar sua vida me esquece.

O caminho foi ficando cada vez mais pobre. Casas simples foram dando lugar a barracos, edificações de final de semana. Puxados, primeiro se constrói um comodo que será a cozinha, depois se faz um banheiro, quando der se ergue mais um comodo. Aqueles que tem mais sorte, até constroem na laje.

Zezinho é trabalhador e está acostumado com essa paisagem que hoje, particularmente mais triste pelo desastroso diálogo. Como fuga ele observa as casas, sabe que um homem saiu de cada um daqueles lares para lutar pelo sustento dos mais frágeis que ficam. Sabe também que alguns não saíram. Não puderão sair, não tinham um emprego para se apresentarem.

Zezinho não tem família, gostaria de ter uma pra se preocupar. Pergunta mentalmente como será a família de Maria.

A vida dos outros, a luta de todos. A família de Maria. Não são pensamentos são fuga. Zezinho está entristecido com a verdade mal revelada.

Diminuem o passo frente a um dos mais humildes barracos da região. Maria encara Zezinho e sentencia.

-Entra, vai me dar muito prazer, mas é do meu jeito.

Atravessam um terreno mal cuidado, com alguns trates intercalados no mato alto, chegam a uma porta absolutamente sem segurança que está sendo aberta por uma senhora sisuda, triste e calada que recebe um pacote da sacola de Maria  e se retira.

Maria pronuncia três nomes que se desgrudam de um obsoleto aparelho de TV, também sem dizer palavra. Maria fez as apresentações.

-Ligo o fogo, esquento um feijão, a gente fala um pouco e antes das crianças caírem no sono você vai embora.

Maria voltou a ser coisa parecida com a simpática figura do vagão, fez algumas perguntas sobre a vida de Zezinho, contou algumas amenidades.

Amontoando os pratos na pia, Maria retoma o ar sisudo e decreta:

-Agora você sai enquanto eles ainda estão acordados. Eu e minha vida não podemos dar nada que seja bom pra você. Daqui a dois meses o pai deles sai da cadeia. A gente nunca viveu bem, mas  temos as crianças, e quando ele sair não terá nada além de nós. Toda noite penso se o que vai acontecer é bom ou ruim, mas assim será. Esse foi o lar que ele construiu e é para aqui que ele vai voltar, depois a gente vê. A gente não tem nem como dividir os problemas, mesmo no vagão se afasta de mim.

       

Final nº 3

Desceram. Zezinho se desdobra em gentilezas, carrega as coisa da moça, segura seu braço, oferece um sorriso, num descuido rouba da moça nada além de um inocente beijinho na face. Como troco recebeu um rosto corado e um olhar desajeitado que passou a mirar o chão.

  -Foi só um beijinho. Me dá um beijo de verdade.

-Que coisa. Vamos conversar.

            -A gente conversa e beija.

            -Magina.

            -Que tem de mais você não se agrada de mim.

            -Tenho medo.

            -Medo de mim ?

            -Medo de mim. Nunca conheci um rapaz.

            -Mais já beijou.

            -Nunca. Em casa sempre fui muito obediente, meus pais fizeram de tudo para eu não me aproximar de rapazes, só posso sair pra trabalhar. Eu queria conversar com um rapaz que fosse simpático como você está sendo. Mas não queria que ele quisesse mais nada além de conversar.

            -Mais você não tem vontade de um beijinho.

            -Tenho um sonho de vida. A gente passa tanta dificuldade. Queria ser feliz.

            -Beijinho é felicidade.

            -Queria que fosse bem bonito. Queria lembrar o resto da vida.

             -Mas você não se agrada de mim?

             -Me agrado mas não estou preparada.

             -Nem pra um beijinho.

             -Um beijinho, outro, quero continuar no único sonho que tenho.

O casal percorre no crepúsculo até seu caminho cruzar com três meninos, na verdade três pivetes. Eles traziam duas facas, um revolver talvez de brinquedo, muita ansiedade traduzida numa pressa louca e agressiva.

Pra que ficar massacrando a todos com os detalhes. Naquele momento os meninos nada tinham a não ser maldade de gente grande. Eles se vingaram no casal da sua má sorte social.

Zezinho ficou sem o pagamento. Maria ficou sem a bolsa, quase sem a blusa, sem sua inocência, seu o seu sonho.

Constrangidos nem se confortam, nem se confortam, nem se abraçam.

Final n° 4

Zezinho e Maria desceram no ponto combinado, um antes do que ela normalmente saltava. Seguiram andando pela calçada esburacada, um esbarrar de braços aqui, um toco de ombros mais adiante, um sorriso sem graça, um risinho bobo acolá. Com o pretexto de ajudar na passagem de um buraco maior ele segura sua mão e não solta mais pelo caminho. Gostoso o calor trocado entre as mãos.

Chegam a frente de um boteco com cadeiras e mesas de plástico vermelhas, gastas, com a marca de uma cerveja. O chão encardido, muitas vassouras passadas….mas nunca lavado de verdade. Balcão surrado de madeira, ovos coloridos, alguns outros potes onde conservas duvidosas boiavam no liquido embaçado. Estabelecimento como tantos outros, não….havia uma diferença, Dona Cidona era a gerente  isso tornava o ambiente quase que familiar. Sentaram, pernas se encostaram, mais olhares encabulados da moça, algum rubor, mas não fez qualquer movimento para se afastar “Essa esta no papo”, pensou Zezinho.

Algumas amenidades faladas, uma cerveja meio quente e dois pasteis meio murchos na mesa. Maria olha nos olhos de Zezinho e diz a queima roupa:

– Tenho dois filhos, um com cada homem. Um tem 10 o outro 8. Trabalho dia e noite pra dar alguma decência pra essas crianças. Acho bom você saber logo, assim pode ir embora e me esquecer se quiser. Nenhum homem quer saber de mulher que já tem esse fardo.

Abalado com o soco direto no rosto Zezinho fica alguns minutos sem reagir….Olha as mãozinhas pequenas e calejadas entre as suas, sente a coxa quente colada a sua, os suplicantes e tristes olhos…”Bom difícil é encontrar mulher de vinte e poucos diferente disso, paciência…”

– Terei prazer em conhecer seus meninos!

Horas seguintes seguem com uma Maria exultante, rosto afogueado, cabelos se soltando do coque. Os rápidos beijos no rosto foram logo trocados por longos beijos na boca. O olhar entre tolerante e irritado da Cidona mostrava que deviam sair. De volta a calçada esburacada, risos altos resultantes dos copos de cerveja, corpos colados num desajeitado andar juntos. Uma porta meio camuflada entre outras. No letreiro de gosto duvidoso um “M” camuflado como se fosse um “H” seguido de “Otel”. Zezinho a puxa pra dentro sem questionar vontades. Ela se deixa levar. Lá se vai o ganho da hora extra.

– 2 horas, por favor?

Quarto meio sujo, meio escuro, meio arrumado. Roupas tiradas com uma certa urgência. Maria sussurra:

– Cuidado comigo, são mais de 8 anos sem homem. – Isso excitou muito Zezinho….”Praticamente uma virgem, difícil nos dias de hoje”.

Quatro meses depois o puxadinho ao lado da casa dos pais de Maria já pode ser habitado. Parte de tijolos, parte de compensado (coisa boa, arrumada por um amigo de Zezinho). O quarto tem algumas tabuas de madeira no chão, uma cama de casal doada por uma vizinha, a beliche dos meninos e um sofá pras visitas. Cozinha tem piso e pia, coisa chique, presente do chefe de Maria. Geladeira e fogões velhos trazidos da casa da avó. Banheiro com chuveiro quente, um luxo.

A barriga de Maria já aparece embaixo do vestido branco emprestado de uma vizinha. A barra já esta marrom, já que tinha garoado de tarde e o quintal da mãe estava meio molhado ainda. Ela esta feliz, ele já bêbado, solicitando colaboração pra vaquinha pra comprar mais cerveja….Lingüiça gordurosa, carne de 3ª que passou a noite junto a pedaços de abacaxi, queimavam na churrasqueira comandada pelo irmão de Zezinho que não da conta de servir o mundaréu de gente. O bolo feito de pandeló e varias camadas de glacê de manteiga, aguarda num canto, vitima dos olhares famintos das crianças.

Os xingamentos voltam a ser ditos quando soa o despertador. Lá vai Zezinho para luta corporal de todos os dias garantir o da sobrevivência. Maria foi mandada embora do emprego, também, logo depois de Wesley Thiago nasceu ela já apareceu com outra barriguinha saliente. Ele segue se arrastando para o serviço…na lembrança os dias onde tinha uma motivação para pegar aquele ônibus. Agora ele trabalha em dobro, ainda bem que a Maria conseguiu aquele cartão do governo, de fome eles não morrem.

Retorna pra casa acabado, fome, cansaço e sono se misturam. Mas tudo é amenizado quando vê os bracinhos gordos de Wesley Thiago se estenderem para envolver seu pescoço. “É…acho que valeu a pena”

Caro leitor: entre os quatro finais qual você escolheria? E qual você acha que a vida vai escolher?

 

Cako Machini
Cako Machini
Desde 1953 também responsável pelo mundo que vivemos. Publicitário, marqueteiro, empresário. Criativo, amante das artes. Resolvido a viver o Outono de sua Vida junto a natureza, priorizando as palavras e as viagens.

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