Uns 50 anos depois

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Uns 50 anos depois

trem

          No comecinho dos anos 50 meus pais compraram uma casa na Rua Frei Germano, bairro Penha de França, São Paulo. Nasci nesse endereço.

            Fui estudar num colégio católico, Externato São Vicente de Paula. Não lembro com certeza, mas no terceiro e quarto ano primário fui colega de classe desse rapaz do lado direito da foto.

            Até os anos 60 o bairro da Penha tinha porteiras. Verdade! De um lado o Rio Tietê fazia uma divisa natural. De outro o traçado da Estrada de Ferro Central do Brasil fechava o bairro. Ou você entrava no bairro passando por pontes de madeira ou passava pelas cancelas das ruas que atravessavam em nível a via férrea. Viadutos e pontes de concreto armado vieram bem depois.

            Essa circunstância acentuou uma característica bairrista e a vida Penhense se assemelhava a de uma cidade interiorana. As pessoas da Penha conviviam com as pessoas da Penha. Penhense casava com Penhense. Trocavam de imóveis, mas sempre na Penha.  A maioria dos estabelecimentos mostrava no nome essa tendência. Ótica, Mecânica, Tecidos, Bazar, sempre …. … “da Penha”.

discos

            A Rua Frei germano terminava na Rua Padre Benedito de Camargo e nessa rua, a menos de dois quarteirões residia esse garoto que se tornaria meu grande amigo por muito tempo.

            Não lembro exatamente, mas acho que a primeira vez que estive na casa dele foi para entregá-lo a sua mãe. Eu explico. O Zé Antonio tomou um tombo na porta do banheiro do colégio, arrebentou a boca e quebrou um dente. A Irmã Dionísia, a freira nossa professora, pediu que algum coleguinha que morasse perto da casa dele, o acompanhasse. Talvez se fosse hoje ele seria levado de ambulância e ficaria em observação em algum hospital. Ninguém era tão fresco naquela época.

            E assim sem frescura passamos alguns anos juntos, jogando bola nas ruas não asfaltadas. Bebendo água nas mangueiras dos quintais. Excursionando de bicicleta por pontos mais distantes do bairro.

            No colégio além de estarmos na mesma classe, estávamos também juntos na fanfarra e no coral.

            Os avôs do Zé Antonio haviam se mudado, deixando vazia uma casa muito ampla com um excelente quintal, nossa turma toda passou muitas tardes por lá.

acamp-barraca

            Aliás, a inclusão do termo turma era coisa que deveria ser sido inserida nesse texto desde o começo. Nós sempre andamos, convivemos em grupo, mas o termo usado era Turma.

            Tantas e tantas tardes a Turma ia se formando para ir ao Clube Esportivo da Penha (CEP). O Vanderlei vinha da Rua Umbó. Trazia o irmão Valdir, passava na casa do Laerte, passavam na minha casa. Subíamos mais um quarteirão, chegávamos na casa do Zé Antonio que com o irmão Paulo Sergio se juntava a Turma. Por vezes esse cortejo trazia muito mais garotos. Em certos períodos isso se repetia diariamente por meses a fio pulando as segundas feiras, dia de clube fechado para manutenção.  

            No clube, futebol e piscina. Eu preferia ir para a piscina. O Zé preferia jogar futebol. Numa determinada fase quase todos resolveram praticar Tamboréu. O CEP tinha muita tradição nesse esporte.             

            A família do Zé Antonio mudou (dentro da Penha, claro) para a Rua Ernesto Silva. Passamos a morar no mesmo quarteirão.

            Com alguma freqüência agora adultos ficamos arrumando explicações e justificativas, sobre pontos e fatores que tenham originado nossas manias e tendências.  Tenho comigo que esse pensamento a esquerda que tenho e que “graças a Deus” o Zé Antonio professa também, tenha sido forjado disso que estou chamando de Turma.acamp-lago

            Seria um exagero meu imaginar que era uma prática socialista esse nosso comportamento? Todos os garotos entre seus 8 e 15 anos viviam assim como nós, dentro de coletivos? Nós vivemos. Em grupo organizávamos timinho de futebol, grupinho de ouvir discos, bailinhos, viagens … Estou contando uma história vivida no auge dos meus 13 anos….

            Nos baixos, ou como sempre dissemos, no porão dessa nova casa do Zé, funcionava nosso Clubinho. Eram duas salas amplas, arrumamos tudo direitinho, ficou muito bom. Lá se jogava Buraco, Pebolim.

            Manter o local em ordem, arrumar móveis, tudo era feito coletivamente. As paredes eram decoradas com cartazes (ou quadros, entendam como quiser) produzidos por nós. Não havia nem rivalidade, nem ausência de participação.

            Esse Clubinho já se preocupava com a inclusão social. Deliberamos que cada um de nós pagaria uma mensalidade. Mas isso não era exigido dos garotos reconhecidamente mais pobres. Ninguém impedia o acesso de ninguém. Se na rua todos brincavam juntos, quando íamos lá para dentro não haveria discriminação.

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            Eu gostava muito de ler revistas sobre aventuras, turismo, fiquei fascinado vendo reportagem de pessoas que viajavam e se acomodavam em barracas. O termo camping nem era usado e nossa turma idealizou fazer acampamentos. Passar uma semana numa mata qualquer acomodados em uma barraca, era um sonho maluco que foi realizado algumas vezes.

            Nossa idade na época era coisa de 12/13 anos, era muita ousadia. Passávamos uma semana inteira num coletivo. Sem a presença de adultos, portanto sem hierarquia, tínhamos que coletivizar tudo, tarefas, lazer, comida, tudo!

            Para um desses acampamentos resolvemos dar um nome ao grupo, e assim surgiu a Equipedrada. O logotipo era a figura do Bam-Bam, garotinho do seriado Os Flinstones.

            Um modismo de última hora retirou o Poncho da indumentária rural sul-americana, para colocá-lo como algo chique nos centros urbanos. Claro a Equipedrada não poderia acampar no inverno sem seus ponchos.

            Outra ação digna de nota foi quando resolvemos usar a imensa sala de estar da casa dos avós do Zé Antonio para bailes. O som era uma merda, não tínhamos equipamento para fazer um som decente. Mas a decoração foi marcante. Resolvemos forrar as paredes com cartazes que anunciavam as revistas da semana, do mês. As editoras criavam posters que reproduziam a capa da revista que acabava de entrar em circulação. Nossa turma fazia uma ronda pelo bairro “recolhendo” das bancas de jornal os cartazes colocados na parte traseira. Os jornaleiros usavam fita crepe para afixar os cartazes. Retirávamos com muito cuidado o material não ficava danificado.

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            Nossa turma viveu intensamente os festivais de música da TV Record. Recordo nossas discussões sobre a rivalidade entre A Banda e Disparada. Da dualidade de gostar e estranhar os tropicalistas. Do caso do violão quebrado e arremessado contra a platéia pelo vaiado Sergio Ricardo Lembro termos assistido no clubinho a final da edição de 1968. Nessa edição mesmo sem vencer ficaram na nossa memória Divino e Maravilhoso de Gil e Caetano, interpretada por Gal Costa e Dois mil e um dos Mutantes.

            Registrei muitos desses momentos num moderníssimo gravador Aiwa que usava fita de rolo.

            Estou escrevendo essa história num dia 8 de Setembro. Na nossa época nesse dia o bairro da Penha fazia feriado próprio. Recebíamos algumas vezes o prefeito, todo ano o cardeal de São Paulo nos visitava para no final da tarde, junto com o bairro inteiro (exatamente isso, a imensa maioria dos moradores) fazermos a procissão de N. S. da Penha. Nessa data também se comemora o aniversário do bairro que agora em 2016, completa 349 anos.

            Lembro perfeitamente bem que numa dessas procissões, estávamos somente eu e o Zé Antonio, apartados do grupo não sei por que, e bem em frente a loja de roupas femininas Fabíola, assistimos emocionados a passagem do carro altar mor com a imagem secular de N.S.da Penha.

            Outro exemplo da nossa conduta inclusiva. Por muitas vezes ludibriávamos o porteiro do CEP para facilitar a entrada de algum garoto não sócio. A idéia era somente fazer o garoto jogar futebol conosco num campo gramado.

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            A turma não era composta somente daqueles que citei acima, lembro do Zé Luis, e seus irmãos menores. Lembro do Robson e do Tico irmãos da Agnes ( devem estar todos morando nos USA), menina que foi minha namoradinha. Nilson, Paulo Cesar, Sergio, Fausto, Marcos, Junior, Guilherme, Candião, Alvarinho, Carmo Antonio, Helinho, Flávio. E vamos dar um destaque especial para o Paulão, que tendo um grave retardo mental, mesmo sendo alguns anos mais velho, era o mais infantil de todos.

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            Sou péssimo para nomes. Minha mente vê muitos rostos, minha memória reconhece poucos nomes. Agradeço a cada de vocês um por terem passado algum tempo comigo.

            Obrigado destino por ter dado um empurrãozinho, o Zé Antonio me encontrado na Internet e por esse incrível reencontro.

            Obrigado Zé Antonio, tudo o que você disse sobre nossa infância bateu bem fundo.

 

revistas

 

Cako Machini
Cako Machini
Desde 1953 também responsável pelo mundo que vivemos. Publicitário, marqueteiro, empresário. Criativo, amante das artes. Resolvido a viver o Outono de sua Vida junto a natureza, priorizando as palavras e as viagens.

6 Comments

  1. José Antonio Mesquita Rodrigues disse:

    Emocionante. Puta relato bacana, bela memória e a certeza de ter um amigo pra lá de inesquecível, um amigo tão marcante que forjamos nossas personalidades de forma muito profunda. Feliz demais.

  2. Simoni Bampi disse:

    OLá. Muito bacana o relato. Interessante esta gravação que vc fez dos Festivais da TV Record. Você ainda as tem?

  3. Ângela Silva disse:

    Amigo a noss a Torre dos Tesouros e os de longa data, estes são os melhores.
    Ler este conto, foi como entrar no do tempo e recordar momentos, pessoas e a nossa origem. Nós faz lembrar quem somos e até onde chegamos, as nossa derrotas e vitórias.
    Muitas vezes por conta da correria do dia a dia acabamos esquecendo os nossos amigos, mas nunca é tarde para reencontrar a nossa Torre dos Tesouros.
    Parabéns!!!

    • Cako Machini disse:

      Fico feliz pela forma sensível que esse relato, absolutamente verdadeiro foi recebido por você.
      Leia uma outra matéria “Encontro ao entardecer” os protagonistas são meus pais e a história e o poema são verdadeiros.
      Abraços

  4. Geraldina Andalécio Batista disse:

    Que delícia de leitura.
    PARABÉNS!!
    Se não tiver publicado ainda um baita livro com tão belas fotos, lembranças e histórias. Não deixe de fazê-lo. Não deixe os que não têm acesso à internet sem esssas preciosidades.
    Sucesso… Deus os abençoe.
    Abraço.

    • Cako Machini disse:

      Meu foco é navegar com muita vontade narrando Andanças por estradas brasileiras. No paralelo estou gestando um projeto de mais fôlego (um livro?) que conta muita da minha vida. Estou muito entusiasmado. Agradeço seu incentivo.

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