Encontro ao entardecer – 1948
15 de outubro de 2015
Mary Help
23 de outubro de 2015

Lugar

Lugar 6

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Parte I

– E agora? O que faço da minha vida? Que sentido terão as coisas se estou morto. Isso lá é hora de morrer? Estou me sentindo tão mal assim morto que sou capaz de fazer uma bobagem qualquer. Melhor acabar com a minha vida.

– Bom, a vida continua, quer dizer, a morte, não! O ditado diz a vida! Mas eu estou morto! Caramba além de morto com problemas de semântica, quanta ironia. O que vou fazer da minha vida, quer dizer, da minha morte? Isso soa tão mal.

– Melhor tomar o rumo de casa, da casa nova claro. O negocio é se antecipar, se bem que agora já é um pouco tarde, talvez se eu tivesse me antecipado não teria morrido naquela cena. Quer dizer eu não teria vivido a cena da minha morte. Alias antecipado mesmo estava é o marido dela. Sujeitinho besta precisava tanto? Um escândalo não bastava? Ele gritaria feito louco, eu sairia correndo pelado, eu seria ridicularizado, ele ficaria com fama de valente. Pronto tudo estaria resolvido. Logo ele que nunca foi de violência, tem até cara de bicha. Vai ver foi ciúmes de mim e não dela. Acho melhor ficar quieto, bom eu já morri mesmo, não devo ter muita coisa pra perder Isso mesmo, viado!!!! Viado!!!!! Isso mesmo, to xingando sim, ta pensando que pode sair por ai matando os outros sem mais nem menos. Quem ele pensa que é? Matando gente inocente, desavisada, sem experiência, gente que nunca morreu?!?!?! Viado!!!

– Quer saber? Dessa vida, quer dizer, daquela vida, só se leva o que se comeu, o que se gozou, o que se riu….Eu ri, comi, e gozei….E comi muito a tua mulher. Tá ouvindo viado? Posso até ter morrido, mas comi, e comi muito. Vou até ai e também te mato desgraçado!

– Será que esse louco fez serviço completo, será que ele mandou bala nela também? Se ela morreu, quem sabe ela aparece… eu….ela….a gente….Não! Melhor não. Ela já estava falando em casar, vai chegar por aqui… querendo coisa….melhor não.

– Se não com ela com outra, alias eu nunca fiquei sem mulher. Caramba! Não trouxe o meu caderninho. Será que aqui tem telefone! Automóvel, pra gente paquerar? Motel? Não! Motel tem que ter, se não, pra que a gente nasce? Se tiver, não quero nem nascer de novo, só pra evitar trabalho, sabe.

Lugar 5

– Acho melhor procurar alguém. Quem? Sei lá! Como anda meu relacionamento com os mortos? Mal, faz tempo que eu não entro em contato com nenhum deles.

– Acho que por aqui as coisas devem ser diferentes. Pra falar com as pessoas deve ser só querer e consegue o contado. Mas quem eu chamo? De preferência mulher. Já sei! Terezinha aquela vizinha que morava na rua de baixo! Essa eu tenho certeza que esta por aqui, e deve estar bem perto, morreu do mesmo jeito, o marido pegou ela com o amante. Foi Terezinha quem me iniciou no nobre esporte da janela. Da janela e da punheta, eu ficava ligado na janela dela… Como trocava de roupa gostoso essa dona, demorava, fazia com arte….Era impossível que ela não soubesse que estava sendo apreciada. Ou pelo menos imaginava que homens tarados estavam maculando a intimidade de tão inocente mulher. Eu lá, firme… um…dois…pra frente, pra trás. Ela numa performance ritmada. Por causa dela  quase me transformo num sado-masoquista….tomei uma puta surra quando estava quase para gozar. Minha mulher me pegou no meio da sessão.

Paulinho!!! Esse deve vir me receber… será que ele ainda lembra de mim! Estão completando mais de 3 anos que não nos encontramos. Como ele estará? Cadavérico com certeza.

Quer saber? Nada de ficar dependendo de alguém, vou tomar meu rumo sozinho. Pra onde eu vou? Bom, sei lá, se o pessoal lá do outro lado me ensinou direitinho, não tem muita opção por aqui: Paraíso, Purgatório… Inferno. Inferno…? Com sinceridade acho que não precisa refletir muito, devo estar matriculado  lá mesmo. Principalmente considerando a forma da causa mortis.

Sabe, estou louco para ler o que escreveram no meu atestado de óbito. E no meu currículo? Mulherengo, putanheiro, farrista, gozador, morto sobre a amante com um tiro… na bunda!!! Essa esse maridinho de merda vai me pagar. Logo ele, com aquela cara de manso. Não se pode confiar em ninguém.

E como é que eu vou fazer pra encontrar o Inferno?

– Alô, é do Inferno?… Pensei… E como eu faço pra chegar lá? É com outra telefonista? Certo. Mas você sabe onde fica? Então porque não informa?”… Vá pro Inferno você também.

O horizonte está mais vermelho para aquele lado, vou pra lá…

Como será a coisa por aquelas bandas? Deve haver muita sacanagem, afinal lá é o inferno. E se a sacanagem for pra cima de mim? Juro, se não gostar apronto uma baita revolução. Não deve ser difícil, o que por lá não dever faltar é gente querendo agitar.

Lugar 2

Parte II 

Aquele ali deve ser o diabo? Um sujeito baixo, de terno escuro, camisa preta, gravata preta, chapéu coco enterrado na cabeça, um temendo charuto…., lá na terra teria outro nome.

– Senta ai, vai parlando. Lógico, se é diabo tem de ser grosso.

– Sentar ali? Está louco? Aquilo é uma cadeira elétrica!

– Calma, funciona com programação eletrônica. Dá choque aleatoriamente somente um camarada a cada 50 que sentam ai.

– Quer dizer que aqui no Inferno o castigo é de surpresa?

– A moleza de programar o sofrimento só lá na terra mesmo, bambino.

– Sofrimento programado?

– Lá você trabalhava? Era sposato? Ralava pra arrumar dinheiro? Pois então…sofrimento programado. Morrendo e aprendendo, não é mesmo?

– Diga logo a que veio?

– Morri!!!!

– Acredito, aliás aqui só morto parece, mas…?

– Quero meu lugar.

– Nome completo?

– Paulo de Tal.

– Não é aqui.

– Como assim?

– Você deve estar escalado para outro departamento. Aqui não.

– Procurou direito? Olha que eu tenho quase certeza.

– Sua ficha não esta aqui, retire-se. O garoto não quer me enfrentar, quer?

– De jeito nenhum, não se ofenda… Mas o Sr. sabia que eu morri sobre uma amante?

Vero? Seria una buona recomendação.

– E passei toda minha vida sobre ou sob uma mulher, e mulher dos outros, na maioria dos casos.

– Parece ser molto interessante. La nostra famíglia está precisando de gente assim como você.

– Interessante? Pois fique o senhor sabendo que eu não perdoava nenhuma, a semana passada sai, alias, comi uma garotinha….uma garotinha sabe de que idade? Doze anos.

– Dodici anni ???!!!!

– Mas tinha o corpinho de uma de oito.

– Estou afascinato.

– Temos tempo para um bom papo? Aliás, onde o Senhor. compra esse desodorante de enxofre? Raro não?

– Teríamos, já disse, sua ficha não esta aqui.

– Esse é o meu lugar? Malandragem conta ponto?

– Ajuda.

– Picaretagem na vida profissional? Corrupção? Palavrão na porta do banheiro?

– Camarate! Esse é o inferno. Eu sou o demônio, quando me esquento viro o diabo. Tenho um péssimo nome a zelar, nossa instituição e a sua reputação precisam ser preservadas. Quero que você se retire! Estou maravilhado com a sua conduta, parabéns mio figlio, você é um belo exemplo, mas eu não quero ser acusado de protecionista.

Lugar 8 III Parte 

Pode esperar na sala da direita ou na sala da esquerda.

– Qual a diferença?

– Cadeiras de pau na sala à direita, Ar condicionado, FM e estofados na sala à esquerda.

– Se eu posso escolher, então…

– Pode escolher e pagar. Aqui tudo tem um custo. Esse é o Purgatório, esqueceu-se?…

– Acredito que não tenha recebido confirmação da sua reserva.

– A senhora que é a responsável por aqui? Seu nome?

– Madalena, Maria Madalena.

– Ah! Dona Madalena, prazer, não sabia que a senhora estava por aqui, pensei que com o seu arrependimento a senhora tivesse ido lá pra cima direto.

– Isso é outro caso. Podemos oferecer-lhe cartão de crédito, cheque especial, mas lembre-se, dívidas são dívidas e terão que serem pagas.

– Sim lógico, concordo. Posso apanhar um cigarro?

– Colocarei em sua conta. Como eu dizia não tenho confirmação de sua reserva não sei se poderá ficar. Podemos adiantar fazendo a ficha dos créditos.

– Eu concordo.

– Aceitava o governo sem reclamações? Era assalariado? Ficava esperando devolução do imposto de renda? Assistia a debates políticos?

– Sim fazia tudo isso, por quê?

– Pra saber seus créditos, pra saber até aonde o Senhor. tem saldo pra pagar suas faltas. Em caso de pouco saldo, ou resultado negativo o Senhor. deve procurar aquele agiota vermelho lá de baixo. E com ele….a divida será eterna!

– Mal perguntando, a senhora esta aqui até hoje por quê?

– Contando tempo de casa, mais nada.

– Aqui pra nós “nada”, se me permite a intimidade, saiba que temos muito em comum? Talvez agente pudesse…quem sabe….com mais calma…

– Trate primeiro de saber se você tem credito, antes de contrair novas dividas – o olhar dela não parecia muito arrependido.

– Por aqui não se usa o termo “investimento”?

– Bom….no transito o senhor se permitia “incomodar só um pouquinho?” Fechava os negócios da firma perguntando quanto ia ser o seu? Era casado e tinha muitos casos? Isso tudo torna difícil seu crédito.

– Anote ai: já morei com sogra, torcia pelo Corinthians, meu salário tinha reajuste segundo o governo. Fui filho do meio. Consegui decorar o Hino Nacional. Fui vendedor dois anos. E sabe quem era o meu vizinho atualmente? “Fulano de Tal”!

– Mas porque o senhor não disse antes? Bem, sendo assim vamos compor sua ficha proposta. Quando seu atestado de óbito chegar será anexado, ai a documentação segue para a matriz onde tudo será decidido. Ficaremos na dependência da matriz e do seu cadastro.

– E até lá?

– O máximo que posso fazer pelo Senhor é instalá-lo provisoriamente, desde que me seja assinado um termo de responsabilidade….testemunha….avalista…imposto…seguro…

Lugar 7

Parte IV 

– E foi assim como eu estou contando, um grande equivoco. O senhor sabe como é? Sempre vivi para o bem, convicto de ter trilhado honestamente o caminho…

– Certamente, estou frente a um dadivoso. Verdade, meu filho?

– Pois é seu Arcanjo, eu morri, Humildemente, experimentei ir até o, com o perdão da má palavra, Inferno. Aleluia Senhor!

– Que o nome do nosso presidente seja sempre louvado.

– … Minha ficha não estava lá. Também não estava no Purgatório. A encarregada, uma tal de Dona Madalena, o Sr. conhece?

– O grande patrão deu ordens para contratá-la assim que ela estiver liberada. O senhor aceita um chá?

– Prefiro cafezinho.

– Somente chá irmão, tonifica, não intoxica, reanima.

– Bom…então eu dei graças um vez mais e aqui estou.

– É realmente uma pena o nosso gerente não possa atendê-lo pessoalmente, ele esta ocupado numa reunião. Estão analisando uma nova campanha publicitária. Sabe como é…visando novos consumidores para nossas propostas, a performance do Amor e da Boa Vontade estão em baixa atualmente.

– Teremos algum novo lançamento?

– Nossos projetistas sempre estão planejando alguns milagres, mas é preciso ir com muita calma, sempre aparece algum Querubim bolando um novo dilúvio, mas isso é puro entusiasmo de algum estagiário novato.

– Seu Arcanjo, estou ansioso para conhecer meu novo lugar.

– Temos um pequeno probleminha: eu poderia lhe dar uma cópia dos regulamentos, um livro de cânticos, porem…

– Regulamento? Cânticos?

– Porém nossa administração é muito clara nesse sentido: Se a sua ficha aqui não esta, aqui você não pode ficar.

– E como é que eu faço?

– Se bem me lembro quando irmã Angélica aqui entrou para servir-nos o chá, o seu olhar foi um tanto….digamos… foi um olhar de alguém ainda despreparado para ingressar numa empresa como Paraíso S.A. Meu filho, aqui você teria estabilidade, assistência total, mordomias. Precisamos escolher muito bem os nossos.

Lugar aaa

Parte V

         Acho que eu estou contente. Voltar não é pra qualquer um. Bonzinho o seu Arcanjo lá do Paraíso, arrumou transporte pra mim numa boa. Bom, bem vindo ao mundo dos vivos, eu me saúdo. Retomarei meu lugar na minha casa e ficarei aguardando uma nova oportunidade.

O pessoal de lá jurou que eu poderia ficar tranqüilo, apagariam aquela cena do tiro aqui…aqui atrás, aquele que me mandou pro outro lado.

Sendo assim eu posso ir pra casa tranqüilo. Isso mesmo.

Esta sala esta com uma sensação estranha, claro, arrumação! Deve ser exatamente isso que eu estou estranhado, minha mulher com essa mania de limpeza e arrumação vai acabar me matando. Perdão pessoal! Prometi não tocar mais no assunto.

Alias pensando melhor parece que tem coisa demais nessa casa. Cadê minhas revistar naturalistas? (mulheres ao natural). Quem deixou esse glossário sobre economia sobre a mesinha?

Não! Meu quadro fora da parede, não! Será que não se pode morrer nem um pouquinho que o pessoal já começa fazer de conta que a gente não existe mais? Da próxima vez vou dar uma dura coletiva, ou deixam minhas coisas do jeito como eu sempre quis ou eu levo todo mundo comigo.

Espia só o quarto, chinelo acolchoado do lado da cama, cinzeiro cheio do meu lado da cama, roupão de esponja dobrado direitinho. Essa minha mulher tem cada uma.

O homem morre, é rejeitado no Inferno, no Purgatório, até no Céu, e quando volta para casa encontra uma coisa dessas.

Um homem passa o dia fora, à noite fora, mas esta defendendo sua família, para o dia que ele vier a faltar… Esse é o sermão pra quando a gente chega fora de hora. Que assim continua…O guerreiro merece repouso, seu lar é seu santuário, não maculem esse santuário…

Pera lá, desde quando eu fumo no quarto? E a minha mulher não fuma em lugar nenhum. Pelo menos não fumava. Eu não suporto chinelo acolchoado, muito menos roupão de espuma, acho tudo isso cafonérrimo. O que essas coisas fazem ai?.

Minha mulher vem entrando em casa…e vem com outro!?!? Pela cara de ambos ela esta mais do que consolada. Que tipinho… Eu sou mais eu cinqüenta vezes.

– Posso cumprimentar o simpático casal?

– Paulo?!?!?!

– Parece?

– O que você esta fazendo aqui?

–  Nada, eu simplesmente estou aqui.

– Mas você morreu!!!!

– Também não é assim. Morreu! Quem ouve você falar vai pensando logo o pior.

– Paulo! Acho que eu mereço uma explicação!

– Você está acompanhada eu acho que também mereço.

– Não desconversa!!

– Eu não fiz nada, só morri, mas não foi assim….eu morri entende? Deve ter havido algum engano. No Inferno  encontrei um mafioso de terno vermelho. No Purgatório fui recebido por uma tal de D. Madalena. Deixei um currículo com o gerente de recrutamento do Paraíso…

– Tinha que ter uma mulher no meio! Você não muda! Quem era ela? Bom também não interessa, só sei de uma coisa: Ninguém mandô você inventar essa estória de morrer….aqui não tem mais lugar pra você!

– …?

Cako Machini
Cako Machini
Desde 1953 também responsável pelo mundo que vivemos. Publicitário, marqueteiro, empresário. Criativo, amante das artes. Resolvido a viver o Outono de sua Vida junto a natureza, priorizando as palavras e as viagens.

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